domingo, 8 de fevereiro de 2015

BÍBLIA (INTRODUÇÃO) - BÍBLIA ONLINE E DOWNLOAD


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Sendo possível que surjam algumas “gralhas” e outras imperfeições, desde já nos penitenciamos, mas a pesquisa e adequação dos textos, levou-nos nalguns casos ao não exercício de uma revisão eficiente.



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Como facilmente podeis deduzir do seu conteúdo, não se trata de uma Bíblia completa, sendo antes composta por excertos de alguns dos seus livros, quer do Antigo quer do Novo Testamento. Completos estão para além das Epístolas editadas, o Livro de Job, o Evangelho de Mateus e o Livro do Apocalipse.
Foram coligidos e editados, de forma pouco ortodoxa, sem títulos e numeração de versículos, para aqueles cristãos que ainda se não aventuraram a ler as Sagradas Escrituras, ou se limitaram a pequenos trechos das mesmas. Umas vezes, não sabendo por onde começar, dada a extensão dos textos; outras começando pelos primeiros livros e neles encontrando uma aridez e enfado que julgo compreensível; outras ainda, pela dificuldade de leitura das letras minúsculas com que se deparam. Neste particular, quantas vezes me lembro dos idosos da minha aldeia e das suas queixas “oculares”.
A palavra “preguiçoso” ocorreu-me, mas não se pense em momento algum, que na minha mente se formou um sentido pejorativo ou “pecaminoso”. Pode ser-se cristão sem nunca ter lido a Bíblia, e lendo-a não o ser.


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Baseando-me em traduções de língua brasileira, certo de que será no Brasil que irei ter um maior número de leitores, isolei alguns Livros do Antigo Testamento e outros do Novo, evitando repetições, nomeadamente fazendo a escolha de um só dos quatro Evangelhos, de molde a que na síntese e numa leitura rápida, com um tamanho de letra “que se veja”, possam os cristãos, e não só, ter um primeiro contacto sequencial e lógico dos textos que fundamentam a sua fé.

Esta é a “Bíblia do Cristão Preguiçoso”, compilada por um não-cristão. Um cristão que já o foi, mas que nos dias de hoje tem sérias dúvidas quanto à divindade de Jesus – veja-se »  

No entanto, é um não-cristão que não consegue renegar as suas origens na fé, que respeita o cristianismo e os seus princípios, que pretende pautar a sua vida por um “jesuísmo” autêntico, investigando e aguardando…



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A Bíblia divide-se em Antigo e Novo Testamento.

O Antigo é composto por 46 livros.

Génesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio constituem o Pentateuco. 
Para além deste, numa parte que podemos designar por “Livros Históricos”, temos: Josué, Juízes, Rute, I de Samuel, II de Samuel, I de Reis, II de Reis, I de Crónicas, II de Crónicas, Esdras, Neemias, Tobias, Judite, Ester, I dos Macabeus e II dos Macabeus.
Seguem-se-lhe os Livros Didácticos: Livro de Job, Salmos, Provérbios, Eclesiastes (Coelet), Cântico dos Cânticos, Sabedoria e Eclesiástico (Sirac).
Por último os Livros Proféticos. Os Profetas Maiores: Isaías, Jeremias, Lamentações, Baruc, Ezequiel e Daniel. E os menores: Oseías, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miqueias, Nahum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias. 


Para o cristão, o Novo Testamento é o repositório essencial da sua fé, o cerne do seu credo.

Márcio, que terá sido na história do cristianismo, um dos primeiros, senão o primeiro teólogo da Bíblia, afirmou que o Novo Testamento e o Antigo não saberiam pregar o mesmo Deus. O próprio Paulo de Tarso já o tinha expresso numa das suas Epístolas redigida no ano de 53 d.C. (aos Gálatas), como veremos infra.

O Novo Testamento consta de 27 livros: 5 Históricos, que são os quatro Evangelhos e os Actos dos Apóstolos, 21 Doutrinais, que são as Epístolas ou Cartas, e um profético, que se denomina Apocalipse.



Os Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João e os Actos, de Lucas. 
As Epístolas ou Cartas de Paulo aos Romanos, I aos Coríntios, II aos Coríntios, aos Gálatas, aos Efésios, aos Filipenses, aos Colossenses, I aos Tessalonicenses, I a Timóteo, II a Timóteo, a Tito, a Filémon, e aos Hebreus.
Para além das Cartas de Paulo, temos a de Tiago, a I e II de Pedro, a I, II e III de João, e a de Judas.
Por último, o Livro profético do Apocalipse.


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O núcleo central desta “Bíblia” no que mais releva para os cristãos, centra-se no Evangelho de Mateus, parcialmente nos Actos, e no Livro do Apocalipse, ainda que este seja de difícil interpretação. 

Escolhemos o Evangelho de Mateus, por ter sido escrito por Levi, chamado Mateus, apóstolo de Jesus, que foi cobrador de impostos. 
E isto, porque o de Marcos, escrito entre 75 e 80 d.C., não o terá sido pelo apóstolo, mas por João de Jerusalém, tradutor de Pedro para o grego. O de Lucas, escrito cerca de 60 d.C., pelo próprio Lucas, mas médico e companheiro de Paulo, que também terá sido o autor dos Actos. O de João terá sido escrito nos primeiros anos do século II, por João, o Ancião, um grego cristão e não o apóstolo João.

Das Cartas, haverá que referir, que apenas as de Paulo aos Tessalonicenses (51 d.C.), aos Gálatas (53 d.C.), I aos Coríntios (55 d.C.), II aos Coríntios (56 d.C.), Romanos (57 d.C.), Filipenses (61-62 d.C.), Filémon (62 d.C.) e a I de Pedro, não suscitam qualquer dúvida quanto à sua autenticidade e ao autor do texto.



Paulo de Tarso foi obviamente um homem genial. As suas Epístolas constituem-se como o mais antigo testemunho do Novo Testamento. Mas as cartas não são os Evangelhos e Paulo não foi apóstolo de Jesus, intitulando-se antes “Apóstolo por vocação”.

Começa por perseguir a “seita” dos cristãos, tomando parte na execução de Santo Estevão, o primeiro mártir do cristianismo, acabando por se converter na sequência de uma visão de Jesus ressuscitado quando se deslocava para Damasco – vejam-se os Actos.
Paulo e os Apóstolos começam por expandir o cristianismo na Judeia, Galileia e Jerusalém, na Ásia Menor, donde embarcam para a Europa. Fundam as Igrejas de Filipes, Tessalónica e Corinto.
Após inúmeras vicissitudes na sua vida missionária, como Apóstolo por vocação, Paulo é preso em Cesareia, mas invocando a cidadania romana, pede para ser julgado pelo imperador. 
É executado em 62 d.C., dois anos depois de ter chegado a Roma. 


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O Antigo Testamento é normalmente interpretado como profecia da vinda do Messias, tendo como protagonista um dos Profetas maiores do judaísmo. É essencialmente nas profecias de Isaías que vamos encontrar as alusões dos intérpretes bíblicos à natividade de Cristo, da sua essência divina, reino universal e paixão redentora.





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A nossa escolha recaiu sobre o Livro de Job, talvez a primeira Teodiceia conhecida, escrita para justificar a existência do mal no mundo e a fé em Deus – daí o privilégio de iniciar os textos – e em excertos do Livro dos Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos – uma nossa versão do poema editada em 2010, que apesar de não ter pontuação é de todo compreensível -, Eclesiástico, e passagens proféticas relativas ao Messias, do Livro de Isaías, julgado o maior de entre todos os Profetas.  


No que ao Novo Testamento respeita, cingimo-nos ao Evangelho de Mateus, aos Actos, às duas primeiras Cartas de Paulo e a primeira de Pedro. Por fim, o Livro do Apocalipse, escrito por João, o Sacerdotee não o Apóstolo -, na última década do século primeiro.

Assim:
ANTIGO TESTAMENTO
- Livro de Job;
- Salmos;
- Provérbios;
- Eclesiastes;
- Cântico dos Cânticos;
- Eclesiástico;
- Isaías.
NOVO TESTAMENTO
- Evangelho Segundo S. Mateus;
- Actos dos Apóstolos;
- Primeira Epístola de S. Paulo aos Tessalonicenses;
- Epístola de S. Paulo aos Gálatas;
- Primeira Epístola de S. Pedro;
- Apocalipse.

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Atente-se que na Epístola aos Gálatas, Paulo emancipa definitivamente o cristianismo do judaísmo, daí advindo a importância daquela.

O Cristianismo teria depois do nascimento de Jesus uma construção doutrinal de quatro séculos.



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NOTA PARA LEITURA - A consulta ou leitura dos mencionados textos, pode ser realizada sequencialmente ou clicando no respectivo Livro, na coluna direita deste blogue.





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JOSÉ MARIA ALVES
(BLOGUE PESSOAL)

(SITE PESSOAL)



LIVRO DE JOB


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Houve na terra de Hus um homem chamado Job: era um homem inatacável e recto, que respeitava e temia Deus e se arredava do mal. Nasceram-lhe sete filhos e três filhas. Era proprietário de sete mil ovelhas, três mil camelos, quinhentas juntas de bois, quinhentas mulas, bem como de servos em grande número. Era o mais rico de todos os homens do Oriente. Seus filhos tinham por hábito celebrar festins. Um dia em casa de um, um dia em casa de outro, convocando suas três irmãs para comer e beber com eles. Terminados os dias de festejo, Job mandava-os chamar para os purificar; de manhã cedo oferecia um holocausto por cada um deles, e dizia: "Talvez meus filhos tenham cometido algum pecado, difamando Deus em seu coração." Assim era seu costume fazer sempre. No dia em que os filhos de Deus compareceram perante Deus, entre eles veio também Satanás. Deus então perguntou a Satanás: "Donde vens?" — "Venho de dar uma volta pela terra, andando sem destino", respondeu Satanás. Deus disse a Satanás: "Reparaste no meu servo Job? Na terra não há outro igual: é um homem íntegro e recto, que teme Deus e se afasta do mal." Satanás respondeu-Lhe: "É por nada que Job teme a Deus? Porventura não levantaste um muro de proteção à sua volta, de sua casa e de todos os seus bens? Abendiçoaste a obra das suas mãos e os seus rebanhos cobrem toda a região. Mas estende a tua mão e toca nos seus bens; eu te garanto que te lançará imprecações em rosto. " Então Deus disse a Satanás: "Pois bem, tudo o que ele possui está em teu poder, mas não estendas a tua mão contra ele, nem contra a sua vida." E Satanás saiu da presença de Deus. Ora, um dia em que os filhos e filhas de Job comiam e bebiam vinho na casa do irmão mais velho, chegou um emissário à casa de Job que lhe disse: "Estavam os bois lavrando e as mulas pastando por perto, quando os sabeus caíram sobre eles, passaram os servos ao fio da espada e levaram tudo o que havia. Só eu pude escapar para te trazer a notícia." Este ainda falava, quando chegou outro e disse: "Caiu do céu o fogo de Deus e queimou ovelhas e pastores e devorou-os. Só eu pude escapar para te trazer a notícia." Este ainda falava, quando chegou outro e disse: "Os caldeus, formando três bandos, lançaram-se sobre os camelos e levaram-nos consigo, depois de passarem os servos ao fio da espada. Só eu pude escapar para te trazer a notícia." Este ainda falava, quando chegou outro e disse: "Estavam teus filhos e tuas filhas comendo e bebendo vinho na casa do irmão mais velho, quando um furacão se levantou do lado do deserto e arremeteu contra os quatro cantos da casa, que se desmoronou sobre os jovens e os matou. Só eu pude escapar para te trazer a notícia." Então Job levantou-se, rasgou seu manto, rapou a sua cabeça, caiu por terra, inclinou-se no chão e disse: "Nu saí do ventre de minha mãe e nu voltarei para lá. Deus o deu, Deus o tirou, bendito seja o nome de Deus." Apesar de tudo o que aconteceu, Job não cometeu qualquer pecado nem contestou o Senhor seu Deus. 

Num outro dia em que os filhos de Deus vieram apresentar-se de novo a Deus, entre eles veio também Satanás. Deus perguntou a Satanás: "Donde vens?" Ele respondeu-Lhe: "Venho de dar uma volta pela terra, andando a esmo." Deus disse a Satanás: "Reparaste no meu servo Job? Na terra não há outro igual: é um homem íntegro e recto, que teme a Deus e se afasta do mal. Ele persevera em sua integridade, e foi por nada que me instigaste contra ele para o aniquilar." Satanás respondeu-Lhe e disse: "Pele após pele! Para salvar a vida, o homem dá tudo o que possui. Mas estende a mão sobre ti e, fere-o na carne e nos ossos; eu te garanto que te lançará maldições em rosto." "Seja!", disse Deus a Satanás, "faz o que quiseres com ele, mas poupa-lhe a vida." E Satanás saiu da presença de Deus. Feriu Job com chagas malignas desde a planta dos pés até ao alto da cabeça. Então Job apanhou um fragmento de cerâmica para se coçar e sentou-se no meio da cinza. Sua mulher disse-lhe: "Persistes ainda em tua integridade? Amaldiçoa Deus e morre duma vez!" Ele respondeu: "Falas como uma tonta: se recebemos de Deus os bens, não deveríamos receber também os males?". Apesar de tudo, Job não cometeu qualquer pecado com os seus lábios. Três amigos de Job — Elifaz de Temã, Baldad de Suás e Sofar de Naamat — ao certificar-se da calamidade que havia sofrido, partiram de sua terra e reuniram-se para ir partilhar sua dor e para o dulcificar. Quando levantaram os olhos, a certa distância, não o identificaram. Alteando a voz, romperam em choros; rasgaram seus mantos e, a seguir, derramaram pó sobre a cabeça. Sentaram-se no chão ao lado dele, sete dias e sete noites, sem que lhe dissessem uma palavra, vendo como era atroz o seu sofrimento. 

Enfim, Job abriu a boca e amaldiçoou o dia do seu nascimento. Job tomou a palavra e disse: "Pereça o dia em que nasci, a noite em que se disse: Um menino foi concebido! Esse dia, que se torne trevas, que Deus do alto não se ocupe dele, que sobre ele não brilhe a luz! Que o reclamem as trevas e sombras compactas, que uma nuvem pouse sobre ele, que um eclipse o apavore! Sim, que dele se apodere a escuridão, que não se some aos dias do ano, que não entre na conta dos meses! Que essa noite fique estéril, que não penetrem ali os gritos de júbilo! Que a amaldiçoem os que amaldiçoam o dia, os entendidos em conjurar Leviatã! Que se escureçam as estrelas da sua aurora, que espere pela luz que não vem, que não veja as pálpebras da alvorada. Porque não fechou as portas do ventre para esconder à minha vista tanta miséria. Por que não morri ao deixar o ventre materno, ou pereci ao sair das entranhas? Por que me recebeu um regaço e seios me deram de mamar? Agora dormiria tranquilo, descansaria em paz, com os reis e os ministros da terra que edificaram suas mansões em lugares desolados; ou como os nobres que amontoaram ouro e prata em seus mausoléus. Que eu fosse como um aborto escondido, que não existisse agora, como crianças que não viram a luz. Ali acaba o tumulto dos ímpios, ali repousam os que estão esgotados. Com eles descansam os prisioneiros, sem ouvir a voz do feitor. Confundem-se pequenos e grandes, e o escravo livra-se do seu amo. Por que foi dada a luz a quem o trabalho oprime, e a vida a quem a amargura aflige,  a quem anseia pela morte que não vem, a quem a procura com afinco como um tesouro, a quem se alegraria em frente do túmulo e exultaria ao ser sepultado, ao homem que não encontra seu caminho, porque Deus o cercou de todos os lados? Por alimento tenho soluços, e os gemidos vêm-me como água. Sucede-me o que mais temia, o que mais me aterrava acontece-me. Vivo sem paz e sem descanso, eu não repouso: o que a mim vem é a agitação!"


Elifaz de Temã tomou a palavra e disse: Se alguém se dirigisse a ti, suportarias? Porém, quem pode refrear-me as palavras? Tu que a tantos davas lições e fortalecias os braços inertes, com tuas palavras levantavas o trôpego e sustentavas joelhos cambaleantes. E hoje que é a tua vez, vacilas? Perturbas-te, hoje, quando tudo cai sobre ti? Não é tua confiança o temor de Deus, e a conduta perfeita tua esperança? Recordas-te de um inocente que tenha perecido? Onde já se viu que justos fossem aniquilados? Eis a minha experiência: Aqueles que cultivam a iniquidade e semeiam a miséria são também os que as colhem. Ao sopro de Deus perecem, são consumidos pelo sopro da sua ira. O rugido do leão e a voz do leopardo, e os dentes dos filhotes são quebrados: morre o leão por falta de presa, e a cria da leoa dispersa-se. Ouvi furtivamente uma revelação, meu ouvido apenas captou seu murmúrio: numa visão nocturna de pesadelo, quando a letargia cai sobre o homem, um terror apoderou-se de mim e um tremor, um frémito abanou os meus ossos. Um sopro roçou-me o rosto e provocou calafrios por todo o corpo. Estava parado — mas não vi seu rosto —, qual fantasma diante dos meus olhos, um silêncio..., depois ouvi uma voz: "Pode o homem ser justo diante de Deus? Um mortal ser puro diante do seu Criador? Dos próprios servos ele desconfia, até mesmo a seus anjos censura o erro. Quanto mais aos que moram em casas de barro, cujos fundamentos se assentam sobre o pó! Serão esmagados mais depressa do que a traça; despedaçados entre a manhã e a noite, perecem para sempre, pois ninguém os traz de volta. O esteio de sua tenda é arrancado, e morrem sem sabedoria." 

Grita, para ver se alguém te responde. A qual dos santos te dirigirás? Porque a ira mata o estulto e a inveja causa a morte do imbecil. Vi um estulto deitar raízes e num momento a sua casa foi amaldiçoada. Seus filhos são privados de socorro, pisados à porta, sem que ninguém os defenda. O faminto comerá a sua ceifa, e Deus lha arrancará da boca, e os sedentos cobiçarão seus bens. Pois a iniquidade não nasce do pó, e a fadiga não brota da terra. É o homem que gera a miséria, como o voo das águias procura a altura. Mesmo assim eu recorreria a Deus, a Deus entregaria a minha causa. Ele faz prodígios insondáveis, maravilhas sem conta: Dá chuva à terra, envia as águas sobre os campos, para os humildes poderem erguer-se e os abatidos pôr-se a salvo. Leva ao malogro os projectos dos astutos, para que fracassem suas artimanhas. Descobre aos sábios sua astúcia, e o conselho dos desacertados torna-se irrefletido. Em pleno dia eles caem nas trevas, e ao meio-dia andam às apalpadelas como de noite. Ele salva da sua boca o homem arruinado, e o indigente das garras do forte; assim o fraco terá esperança, e a injustiça fechará a boca. Ditoso o homem a quem Deus corrige: não desprezes a lição de Shaddai, porque ele fere e pensa a ferida, golpeia e cura com suas mãos. De seis perigos te salva, e no sétimo não sofrerás mal algum. Em tempo de fome livrar-te-á da morte e, na batalha, dos golpes da espada. Esconder-te-ás do açoite da língua, e, ainda que chegue o ladrão, não temerás. Zombarás da devastação e da penúria, e não temerás os animais selvagens. Farás uma aliança com as pedras do campo, e o animal selvagem viverá em paz contigo. Conhecerás a paz na tua tenda, visitarás as tuas propriedades, onde nada faltará. Conhecerás uma descendência numerosa e os teus rebentos serão como a erva do campo. Baixarás ao túmulo bem maduro, como um feixe de trigo recolhido a seu tempo. Foi isto o que observámos. E é de facto assim. Quanto a ti, escuta-o e aproveita-o. 

Job tomou a palavra e disse: Ah, se pudessem porventura pesar a minha agonia e pôr na balança a minha tribulação, seriam mais pesados que a areia do mar, por isso as minhas palavras são desnorteadas. Levo cravadas as flechas de Shaddai e sinto o seu veneno. Os terrores de Deus assediam-me. Porventura, zurra o asno quando tem erva? Ou muge o boi diante do feno? Come-se um manjar insípido, sem sal? Ou que gosto pode haver numa clara de ovo? Ora, o que meu apetite recusa tocar, isso é a minha comida de doente. Oxalá se cumprisse o que pedi, e Deus concedesse o que aguardo: que se dignasse esmagar-me, que soltasse sua mão e me extinguisse. Seria até um alívio para mim: torturado sem piedade, saltaria de gozo, pois não reneguei as palavras do Santo. Que forças me sobejam para resistir? Que destino aguardo para ter paciência? É minha força a força das pedras, ou é de bronze a minha carne? Teria por apoio o nada, e todo o auxílio não abalou para longe de mim? Recusar a compaixão ao próximo, é rejeitar o temor de Shaddai. Meus irmãos atraiçoaram-me como uma enxurrada, como canais de um rio que transborda, tornando-se turvo pelo degelo e arrastando consigo a neve. No tempo de Verão, porém, desaparece, quando vem o calor desaparece no seu leito. As caravanas desviam-se da sua rota, penetram no deserto e perdem-se. As caravanas de Tema procuram-no, e os mercadores de Sabá contam com ele: mas queda burlada a sua esperança, ao encontrá-lo vêem-se desiludidos. Tais sois para mim agora: Ao me verdes, cheios de medo, ficais com pavor. Porventura disse eu: "Dai-me algo"? "Resgatai-me com a vossa fortuna"? "Arrancai-me da mão de um opressor"? "Resgatai-me da mão dos déspotas"? Instruí-me e guardarei silêncio, fazei-me ver em que me equivoquei. Como são agradáveis as palavras justas! Porém, como podeis censurar-me e repreender-me? Pretendeis repreender-me por palavras, considerar como vento as palavras de um atormentado? Seríeis capazes de leiloar um órfão, de traficar o vosso amigo? Agora, olhai-me atentamente: juro não mentir diante de vós. Voltai atrás, por favor: que injustiça se não faça, voltai atrás, porque justa é a minha causa. Há falsidade na minha língua? Meu paladar não poderá distinguir o mal? 

Não está o homem condenado a trabalhos forçados aqui na terra? Não são os seus dias os de um vendido? Como o escravo suspira pela sombra, como o vendido espera o salário, assim tive por herança meses de desapontamento, e couberam-me noites de pesar. Quando me deito, penso: "Quando virá o dia?" Ao me levantar: "Quando chegará a noite?" E são pensamentos loucos os que me invadem até ao crepúsculo. Meu corpo cobre-se de vermes e pústulas, a pele rompe-se e supura. Meus dias correm mais rápido do que a lançadeira e consomem-se sem esperança. Lembra-te que a minha vida é um sopro, e que os meus olhos não voltarão a ver o contentamento. Os olhos de quem me via não mais me verão, teus olhos pousarão sobre mim e já não existirei. Como a nuvem se dissipa e desaparece, assim quem desce ao Xeol não subirá jamais. Não voltará para sua casa, sua morada não tornará a vê-lo. Por isso, não refrearei minha língua, falarei com o espírito mortificado e queixar-me-ei com a alma dolorida. Acaso sou o mar ou o dragão, para que me cerques com guardas? Se eu disser: "Meu leito consolar-me-á e minha cama aliviar-me-á o sofrimento", então amedrontas-me com sonhos e aterras-me com visões. Preferiria morrer garroteado; antes a morte que estes suplícios. Eu feneço, não viverei para sempre; deixa-me, pois os meus dias são um sopro! Que é o homem, para que faças caso dele, para que te ocupes dele, para que o inspeciones a cada manhã e o examines a cada momento? Por que não afastas de mim o olhar e não me deixas até que tenha sorvido a saliva? Se pequei, que mal te fiz com isso, vigia dos homens? Por que me tomas por alvo e cheguei a ser um peso para ti? Por que não perdoas as minhas ofensas e não deixas desaparecer a minha culpa? Eis que logo irei deitar-me no pó; procurar-me-ás e já não existirei. 

Baldad de Suás tomou a palavra e disse: Até quando falarás dessa forma? As palavras da tua boca são um vento exaltado. Acaso Deus retorce o direito, ou Shaddai subverte a justiça? Se teus filhos pecaram contra ele, foram entregues ao poder de seus delitos. Se és irrepreensível e recto, procura a Deus, implora a Shaddai. A partir de agora a sua luz resplendecerá sobre ti e renovará a casa de um justo. Teu passado parecerá pouca coisa diante da exímia grandeza de teu futuro. Pergunta às gerações passadas e medita na experiência dos antepassados. Somos de ontem, não sabemos nada. Nossos dias são uma sombra sobre a terra. Eles, porém, te instruirão e falarão contigo, e na sua experiência encontrarão palavras ajustadas. Acaso brota o papiro fora do pântano, cresce o junco sem água? Verde ainda e sem ser desenraizado seca antes de todas as ervas. Tal é o destino daqueles que se esquecem de Deus, assim se desvanece a esperança do ímpio. Sua confiança é um fiozinho no ar, uma teia de aranha a sua segurança: ao se apoiar em sua casa, esta cairá; quando nela se segurar, ela não resistirá. Cheio de seiva, ao sol, lança rebentos no seu jardim, enreda as raízes entre pedras e vive no meio das rochas. Mas, se o arrancam do lugar, este o renegará: "Nunca te vi." E ei-lo apodrecendo no caminho, e do solo outros germinam. Não, Deus não rejeita o homem íntegro, nem dá a mão aos malvados: ainda pode encher a tua boca de sorrisos e teus lábios de gritos de júbilo. Teus inimigos cobrir-se-ão de vergonha e desaparecerá a tenda dos ímpios. 

Job tomou a palavra e disse: Sei bem que é assim: mas como poderia o homem justificar-se diante de Deus? Se Deus se dignar pleitear contra ele, entre mil razões não haverá uma para o rebater. Quem entre os mais sábios e mais fortes lhe poderá resistir impunemente? Ele move as montanhas, sem que em tal reparemos, e derruba-as na sua ira; abala a terra desde os fundamentos e faz vacilar suas colunas; ordena ao Sol que não brilhe, e guarda sob sigilo as estrelas; sozinho abre os céus e caminha sobre o dorso do mar; criou a Ursa e o Órion, as Plêiades, faz prodígios insondáveis, maravilhas sem conta. Se se cruzar comigo, não poderei vê-lo, se passar roçando-me, não o sentirei; se apanha uma presa, quem lha arrebatará? Quem lhe dirá: "Que fazes aí?" Deus não necessita de reprimir a sua ira, diante dele ajoelham as legiões de Raab. Quanto menos poderei eu replicar ou escolher argumentos contra ele? Ainda que tivesse razão, não receberia resposta, teria que implorar a misericórdia do meu juiz. Ainda que o citasse e ele me respondesse, não creio que desse atenção a meu apelo. Ele esmaga-me por um cabelo, e sem razão multiplica as minhas feridas. Não me deixa retomar alento e enche-me de amargura! Recorrer à força? Ele é mais forte! Ao tribunal? Quem o citará? Mesmo que eu fosse justo, sua boca condenar-me-ia; se eu fosse íntegro, declarar-me-ia culpado. Sou íntegro? Eu mesmo já não sei, menosprezo a existência! É por isso que digo: é a mesma coisa! Ele extermina o íntegro e o ímpio! Se uma calamidade semear a morte repentina, ele ri-se da desesperança dos inocentes; deixa a terra em poder do ímpio e oculta o rosto aos seus governantes: se não for ele, quem será então? Meus dias correm mais depressa que um atleta e esvaem-se sem terem provado a felicidade; deslizam como barcas de papiro, como a águia que se arremessa sobre a presa. Se disser: "Esquecerei minha agonia, mudarei de fisionomia e farei por ter um rosto alegre", atemorizam-me todas essas desgraças, pois sei que não me terás por inocente. E se fosse culpado, para que afadigar-me em vão? Ainda que me lavasse com sabão e purificasse as mãos com soda, tu me submergirias na imundície e as minhas próprias vestes teriam nojo de mim. Ele não é um homem como eu a quem possa dizer: "Vamos juntos comparecer em julgamento." Não existe um árbitro entre nós, que ponha a mão sobre os dois para afastar de mim a sua vara e desviar o medo de seu terror! Então lhe falaria e não teria medo, pois eu não sou assim a meus olhos.  
Já que tenho tédio à vida, darei livre curso ao meu lamento, desafogando a amargura da minha alma. Direi a Deus: Não me condenes, explica-me o que tens contra mim. Acaso te agrada oprimir-me, desdenhar a obra de tuas mãos e favorecer o conselho dos ímpios? Porventura tens olhos de carne, ou vês como vêem os homens? Acaso são os teus dias como os de um mortal e teus anos como os dias do homem, para indagares minha culpa e examinares meu pecado, quando sabes que não sou culpado e que ninguém me pode livrar de tuas mãos? Tuas mãos me formaram e me modelaram, e depois volves-te a mim para me aniquilar? Lembra-te de que me fizeste de barro, e agora me farás voltar ao pó. Não me derramaste como leite e me coalhaste como queijo? De pele e carne me revestiste, de ossos e nervos me teceste. Deste-me a vida e o amor, e tua solicitude me guardou. E, contudo, algo guardavas contigo: agora sei que tinhas a intenção de me vigiar para que, se eu pecasse, para que o meu pecado não fosse considerado isento de culpa. Se tivesse incorrido em pecado, ai de mim! Se fosse inocente, não haveria de levantar a cabeça, saturado de afrontas e saciado de misérias. Orgulhoso como um leão, tu me caças, multiplicas proezas contra mim, renovando contra mim os teus ataques, redobrando contra mim a tua cólera, lançando tropas descansadas contra mim. Então, por que me tiraste do ventre? Poderia ter morrido sem que olho algum me visse, e ser como se não tivesse existido, levado do ventre para o sepulcro. Quão poucos são os dias da minha vida! Deixa de fixar-me, para que eu tenha um instante de alegria, antes de partir, sem nunca mais voltar, para a terra de trevas e sombras, para a terra soturna e sombria, de escuridão e desordem, onde a claridade é sombra. 

Sofar de Naamat tomou a palavra e disse: O conversador ficará sem resposta? Dar-se-á razão ao eloquente? A tua vã linguagem calará os homens? Zombarás sem que ninguém te repreenda? Disseste: "Minha conduta é pura, sou inocente aos teus olhos." Sim, prouvera que Deus falasse, que abrisse os lábios para te responder. Revelar-te-ia os segredos da Sabedoria, que desconcertam toda a sensatez! Então saberias que Deus te pede contas da tua falta. Acaso podes sondar a profundeza de Deus, e atingir os limites de Shaddai? É mais alto que o céu: que poderás fazer? Mais profundo que o Xeol: que poderás saber? É mais vasto que a terra e mais extenso que o mar. Se ele intervém para encerrar e convocar a assembleia, quem o pode impedir? Conhece os homens falsos: vê o crime e presta nele a tua atenção. Homens estúpidos deverão começar a ser sábios e o homem com modos de asno deixar-se domesticar! Se dirigires o teu coração a Deus e estenderes as mãos para ele, se afastares das tuas mãos a maldade e não alojares a injustiça na tua tenda, poderás levantar teu rosto sem mácula, serás inabalável e nada temerás. Esquecerás as tuas desgraças ou recordá-las-ás como água que passou. Tua vida ressurgirá como o meio-dia, a escuridão será como a manhã. Terás confiança, porque agora há esperança; vivias perturbado, deitar-te-ás tranquilo. Repousarás sem sobressaltos e muitos acariciarão teu rosto. Porém, os olhos do ímpio turvam-se, seu refúgio malogra-se, sua esperança é um alento que se extingue. 

Job tomou a palavra e disse: Realmente sois a voz do povo e convosco morrerá a Sabedoria. Mas também eu tenho inteligência, — não sou inferior a vós —; quem ignora tudo isso? Mas o homem torna-se a zombaria do seu amigo quando invoca Deus para ter uma resposta. Zombam do justo íntegro. No infortúnio, o desprezo!, dizem os que estão felizes, um golpe a mais para quem titubeia! Nas tendas dos ladrões reina a paz, e estão seguros os que desafiam Deus, pensando que o têm na mão. Pergunta, pois, ao gado e ensinar-te-á, às aves do céu e informar-te-ão. Os répteis da terra dar-te-ão lições, os peixes dos mares hão-de narrar: quem não haveria de reconhecer que tudo isso é obra da mão de Deus? Na sua mão está a alma de todo ser vivo e o espírito de todo o homem carnal. Não distingue o ouvido as palavras e não saboreia o paladar os manjares? Está nas venerandas velhices a sabedoria, e o entendimento com os anciãos. Mas ele possui sabedoria e poder, dele é o conselho e o entendimento. O que ele destrói, ninguém o reconstrói; se ele aprisionar, não haverá fuga; se retiver a chuva, virá a seca; se a soltar, inundar-se-á a terra. Ele possui força e sensatez, com ele estão o enganado e aquele que engana. Torna estúpidos os conselheiros da terra e fere os juízes com loucura. Desamarra a cintura dos reis e cinge-os com uma corda. Faz andar descalços os sacerdotes e lança por terra os poderes estabelecidos. Tira a palavra aos confiantes e priva de sensatez os anciãos. Derrama o desprezo sobre os nobres e afrouxa o cinturão dos fortes; descobre o que há de mais recôndito nas trevas e traz à luz as sombras espessas; engrandece as nações e arruína-as: expande povos, e depois suprime-os; tira o juízo aos chefes de um país e deixa-os errar num deserto sem estradas, cambalear nas trevas, sem luz, e titubear como um bêbado. 
Tudo meus olhos viram e meus ouvidos ouviram e entenderam. O que vós sabeis, eu também o sei, e não sou em nada inferior a vós. Mas prefiro dirigir-me a Shaddai, desejo argumentar com Deus. Vós não sois senão impostores, todos vós meros charlatães. Se, ao menos, vos calásseis, tomar-vos-iam por sábios! Por favor, escutai os meus argumentos, atendei às razões de meus lábios. Pensais defender Deus com linguagem iníqua e com mentiras? Quereis tomar o seu partido e ser seus advogados? Que tal se ele vos examinasse? Iríeis enganá-lo como se engana um homem? Ele vos infligirá severa reprimenda, se fordes parciais às ocultas. Não vos atemoriza a sua majestade? Não desce sobre vós o seu terror? As lições por vós aprendidas são cinzas, e vossas defesas, defesas de barro. Guardai silêncio, agora sou eu quem fala. Porei a minha carne entre os meus dentes, levarei nas mãos a minha vida. Ele pode matar-me: mas não tenho outra esperança senão defender o meu caminho diante dele. Isto já seria minha salvação, pois o ímpio não ousaria comparecer diante dele. Escutai, escutai as minhas palavras, dai ouvido ao que vou declarar. Eis que procederei com justiça, e sei que sou inocente. Quem quer disputar comigo? De antemão, estou pronto para me calar e para morrer! Faz-me apenas duas concessões, e não me esconderei de tua presença: afasta de mim a tua mão e não me amedrontes com o teu terror. Depois poderás acusar-me e eu te responderei, ou falarei eu e tu me replicarás: Quantos são os meus pecados e minhas culpas? Prova meus delitos e pecados. Por que ocultas a tua face e me tratas como teu inimigo? Queres, então, assustar uma folha levada pelo vento e perseguir a palha seca? Pois rediges contra mim sentenças amargas, obrigas-me a assumir os pecados da minha juventude, e prendes os meus pés ao cepo; vigias todos os meus passos e examinas as minhas pegadas. O homem consome-se como a podridão, como um vestido roído pela traça. 
O homem, nascido de mulher, tem a vida curta e cheia de tormentos. É como a flor que se abre e logo murcha, foge como sombra sem parar. E é sobre alguém assim que cravas os teus olhos e o levas a julgamento contigo? Quem fará sair o puro do impuro? Ninguém! Se os seus dias já estão determinados e sabes o número de seus meses, se lhe fixaste um limite intransponível, desvia dele teus olhos e deixa-o, para terminar o seu dia como o assalariado. A árvore tem esperança, pois cortada poderá renascer, e seus ramos continuam a crescer. Ainda que envelheçam suas raízes na terra e seu tronco esteja apagado no solo, ao cheiro da água reverdece e produz folhagem, como planta tenra. O homem, porém, morre e jaz inerte; expira o mortal, e onde está ele? As águas do mar podem sumir, baixar os rios e secar: jaz, porém, o homem e não pode levantar-se, os céus gastar-se-iam antes de ele despertar ou ser acordado de seu sono. Oxalá me abrigasses no Xeol e lá me escondesses até que a tua ira fosse aplacada, e me fixasses um dia para te lembrares de mim: pois, se alguém morrer, poderá reviver? Nos dias de minha pena eu aguardo, até que advenha o meu descanso. Tu chamar-me-ias e eu responderia; desejarias rever a obra de tuas mãos, — enquanto agora contas todos os meus passos —, e não vigiarias mais o meu pecado, selarias numa urna os meus delitos e lacrarias minha iniquidade. Mas, igual ao monte que ao cair se desfaz, e ao rochedo que muda de lugar, à água que desgasta as pedras, à tormenta que arrasta as terras, assim é a esperança do homem que tu destróis. Tu continuamente o abates e ele some-se, transtornas o seu semblante e o repeles. Seus filhos adquirem honras, mas não o chegará a saber; caem em desonra, mas ele não o percebe. Só sente o tormento da sua carne, só sente a pena de sua alma. 

Elifaz de Temã tomou a palavra e disse: Acaso responde um sábio com razões empoladas, e enche seu ventre com vento leste, defendendo-se com razões inconsistentes, ou com palavras sem sentido? Além do mais, suprimes o temor, as piedosas meditações diante de Deus. A tua culpa inspira-te as palavras e adoptas a linguagem dos astutos. Tua própria boca te condena, e não eu, são os teus próprios lábios que testemunham contra ti. Foste, porventura, o primeiro homem a nascer, e vieste ao mundo antes das colinas? Acaso foste admitido ao conselho de Deus e te apropriaste da sabedoria? Que sabes que nós não saibamos? Que entendes que não entendamos? Há também entre nós anciãos de venerandas cãs, muito mais velhos que teu pai. Fazes pouco caso dessas consolações divinas e das palavras suaves que te são dirigidas? Como te arrebata a paixão! E lampejas os olhos, quando voltas contra Deus a tua cólera, proferindo teus discursos! Como pode o homem ser puro ou inocente, o nascido de mulher? Até nos seus Santos Deus não confia, e os Céus não são puros aos seus olhos. Quanto menos o homem, detestável e corrompido, que bebe como água a iniquidade! Escuta-me, pois quero instruir-te, vou contar-te o que vi, o que transmitiram os Sábios, o que seus Pais não desmentiram, somente a eles foi dada a terra, e nenhum estrangeiro no meio deles se instalou. A vida do ímpio é um tormento contínuo, e poucos são os anos reservados ao tirano; escuta os ruídos que o espantam; quando está em paz, assalta-o o bandido; não tem esperança de retornar das trevas e sente-se destinado ao fio da espada; é marcado para ser pasto dos abutres e sabe que sua ruína é iminente. O dia tenebroso aterroriza-o, a tribulação e a angústia acometem-no, como um rei disposto ao ataque; porque estendeu a mão contra Deus e desafiou a Shaddai, investindo contra ele de cabeça curvada, com escudo trabalhado em relevos maciços; seu rosto estava coberto de graxa, a gordura acumulou-se nos seus rins. Ocupara cidades destruídas, casas desabitadas e prestes a cair em ruínas. Não será rico, nem sua fortuna terá consistência, a sua sombra não cobrirá mais a terra, não escapará das trevas. A chama queimará seus rebentos e o vento arrebatará a sua flor. Não se fie no seu porte grandioso, porque ficaria iludido. Antes do tempo murcharão as suas palmas e seus ramos não ficarão mais verdes. Como uma videira deixará cair os seus frutos ainda verdes, e como a oliveira perderá a sua floração. Pois a comunidade do ímpio é estéril, um fogo devora a tenda do homem enganador. Quem concebe a pena gera a infelicidade e leva em si um fruto de decepção. 

Job tomou a palavra e disse: Já ouvi mil discursos semelhantes, sois todos consoladores importunos. "Não há um limite para discursos vazios? Que há que te incita a contestar?" Também eu poderia falar como vós, se estivésseis em meu lugar; poderia acabrunhar-vos com discursos levantando sobre vós a cabeça, reconfortar-vos com palavras, e depois deixar de agitar os lábios. Se falo, não cessa minha dor; se me calo, como é que ela irá desaparecer? Mas agora extenuou-me; feriste com horror tudo o que me cerca, e ele deprime-me, meu caluniador tornou-se minha testemunha, levanta-se contra mim e acusa-me diretamente, sua ira persegue-me para me dilacerar, range contra mim os dentes, meus inimigos aguçam os olhos contra mim. Abrem contra mim a boca, esbofeteiam-me com suas afrontas, todos se aglomeram em massa contra mim. Deus entregou-me a injustos, jogou-me nas mãos dos ímpios. Vivia eu tranquilo, quando me esmagou, agarrou-me pela nuca e triturou-me. Fez de mim seu alvo. Suas flechas zuniam em torno de mim, atravessou-me os rins sem piedade, e por terra derramou meu fel. Abriu-me com mil brechas e assaltou-me como um guerreiro. Costurei um saco para cobrir a minha pele e mergulhei o meu rosto no pó. Meu rosto está vermelho de tanto chorar e a sombra pesa sobre minhas pálpebras, embora não haja violência em minhas mãos e seja sincera minha oração. Ó terra, não cubras meu sangue, não encontre meu clamor um lugar de descanso! Tenho, desde já, uma testemunha nos céus, e um defensor nas alturas; intérprete de meus pensamentos junto a Deus, diante do qual as minhas lágrimas correm; que ele julgue entre o homem e Deus como se julga um pleito entre homens. Porque passarão os anos que me foram contados e empreenderei a viagem sem retorno. 
Meu espírito está quebrantado, e os coveiros ajuntam-se para mim. Só me acompanham as zombarias, sobre sua hostilidade pousam meus olhos. Guarda contigo uma fiança em meu favor, pois quem, senão tu, me apertará a mão? Fechaste-lhes a mente à razão e mão alguma se levanta. Como aquele que convida amigos à partilha, quando os olhos de seus filhos enlanguescem, tornei-me objeto de sátira entre o povo, alguém sobre o qual se cospe no rosto. Meus olhos consomem-se irritados e meus membros definham como sombras: os justos assombram-se ao vê-lo, e o inocente indigna-se contra o ímpio; o justo, porém, persiste no seu caminho, e o homem de mãos puras cresce em fortaleza. Entretanto, voltai-vos todos, vinde: não acharei sequer um sábio entre vós! Passaram-se meus dias, com meus projetos, as fibras de meu coração romperam-se. Querem fazer da noite, dia; estaria perto a luz que afugenta as trevas. Ora, minha esperança é habitar no Xeol e preparar a minha cama nas trevas. Digo à cova: "Tu és meu pai!"; ao verme: "Tu és minha mãe e minha irmã!" Pois onde, onde então, está minha esperança? Minha felicidade, quem a viu? Descerão comigo ao Xeol, baixaremos juntos ao pó? 

Baldad de Suás tomou a palavra e disse: Até quando impedirás as palavras? Reflete e depois falaremos. Por que nos consideras como animais, e passamos por estúpidos aos teus olhos? Tu, que te desmembras em tua cólera, acaso ficará a terra desabitada por tua causa, ou os rochedos serão mudados de seu lugar? A luz do ímpio extingue-se, e a chama de seu fogo deixará de alumiar. A luz obscurece-se na sua tenda, e acima dele se apaga sua lâmpada. Seus passos vigorosos encurtam-se, e seus próprios projetos deitam-no por terra. Os seus pés jogam-no na armadilha, e ele caminha entre as redes. A armadilha prende-o pelo calcanhar, e o laço segura-o firme; a corda está escondida no chão, e a armadilha no seu caminho. Rodeiam-no terrores que o amedrontam, perseguindo-o passo a passo. A fome torna-se a sua companheira, e a desgraça instala-se a seu lado. A enfermidade consome-lhe a pele, devora seus membros o Primogênito da Morte. Arrancam-no da paz da sua tenda, e tu o conduzes ao rei dos terrores. Podes habitar a tenda que não é mais sua, e espalham o enxofre sobre o teu redil. Por baixo secam suas raízes, por cima murcham seus ramos. Sua memória desaparecerá de sua terra, seu nome apagar-se-á na região. Lançado da luz às trevas, ele vê-se banido da terra, sem prole nem descendência entre seu povo, sem um sobrevivente em seu território. De seu destino espanta-se o Ocidente, e o Oriente enche-se de terror. Esta era a morada do malvado e o lugar do que não reconhecia Deus! 

Job tomou a palavra e disse: Até quando continuareis a afligir-me e a magoar-me com palavras? Já por dez vezes me insultastes, e não vos envergonhais de zombar de mim. Se de facto caí em erro, meu erro só a mim diria respeito. Quereis triunfar sobre mim, lançando-me no rosto minha afronta? Pois sabei que foi Deus quem me transtornou, envolvendo-me em suas redes. Grito: "Violência!", e ninguém me responde, peço socorro, e ninguém me defende. Ele bloqueou o meu caminho e não tenho saída, encheu de trevas as minhas veredas. Despojou-me da minha honra e tirou-me a coroa da cabeça. Demoliu tudo em redor de mim e tenho de ir-me, desenraizou a minha esperança como uma árvore. Acendeu sua ira contra mim, considera-me seu inimigo. Chegam em massa os seus esquadrões, abrem na minha direção o seu caminho de acesso e acampam em volta da minha tenda. Ele afastou os meus irmãos, os meus parentes procuram evitar-me. Abandonaram-me vizinhos e conhecidos, esqueceram-me os hóspedes de minha casa. Minhas servas consideram-me um intruso, a seu ver sou um estranho. Chamo o meu servo, e não me responde, devo até suplicar-lhe. À minha mulher repugna meu hálito, e meu mau cheiro, aos meus próprios irmãos. Até as crianças me desprezam e insultam, se procuro levantar-me. Todos os meus íntimos têm-me aversão, contra mim se voltam os meus amigos. Debaixo da pele a minha carne apodrece e os meus ossos desnudam-se como dentes. Piedade, piedade de mim, meus amigos, que me feriu a mão de Deus! Por que me perseguis como Deus, e sois insaciáveis de minha carne? Oxalá minhas palavras fossem escritas, e fossem gravadas numa inscrição; com cinzel de ferro e estilete fossem esculpidas na rocha para sempre! Eu sei que meu Defensor está vivo e que no fim se levantará sobre o pó: depois do meu despertar, levantar-me-á junto dele, e em minha carne verei a Deus. Aquele que eu vir será para mim, aquele que meus olhos contemplarem não será um estranho. Dentro de mim consomem-se os meus rins. E se disserdes: "Como o havemos de perseguir, que pretextos poderá encontrar nele?", temei a espada, pois a cólera queimará as faltas e sabereis que há um julgamento! 

Sofar de Naamat tomou a palavra e disse: É por isso que os meus pensamentos me levam a replicar, pois agitam-se dentro de mim. Escutei uma censura injuriosa, e agora o meu espírito convida-me a responder. Não sabes que é assim desde sempre, desde que o homem foi posto na terra, que o júbilo dos ímpios é efémero e a alegria do malvado só dura um instante? Mesmo que o seu porte se elevasse até o céu e tocasse as nuvens com a fronte, pereceria para sempre como fantasma, e aqueles que o viam dirão: "Onde está?" Voará como um sonho inatingível, dissipar-se-á como visão noturna. Os olhos que o viam não mais o verão, nem mais o reconhecerá sua morada. Seus filhos terão que indemnizar os pobres, e suas crianças, que restituir as suas riquezas. Seus ossos, ainda cheios de vigor juvenil, deitar-se-ão com ele no pó. Se a maldade tinha um sabor doce em sua boca e ele a escondia debaixo da língua e a guardava, sem que a soltasse, retendo-a no seu paladar, este manjar há-de corromper-se no seu ventre, nas suas entranhas será veneno de víboras. Vomitará as riquezas que engoliu, Deus as faz expelir de seu ventre. Sugará veneno de serpentes e matá-lo-ão as presas da áspide. Não mais verá os mananciais de óleo, nem os rios de leite e mel. Perderá seu aspecto alegre ao restituir os seus ganhos, e o ar satisfeito de quando os negócios prosperavam: porque destruiu as cabanas dos pobres e apropriou-se de casas que não tinha construído. Porque seu apetite se mostrou insaciável, seus tesouros não o salvarão. Nada escapou à sua voracidade, por isso não durará sua prosperidade. Em plena abundância sofrerá o golpe da penúria, com toda a sua força a miséria cairá sobre ele. Deus derrama sobre ele o ardor de sua ira, lança-lhe na carne uma chuva de flechas. Se escapar das armas de ferro, atravessá-lo-á o arco de bronze; uma flecha sai de suas costas, e um dardo chamejante, do seu fígado. Terrores avançarão sobre ele, todas as trevas escondidas lá estão para o apanhar. Devorá-lo-á um fogo não aceso por homem, consumindo o que resta da sua tenda. O céu revelará sua iniquidade, a terra insurgir-se-á contra ele. O lucro de sua casa escorre, como torrentes no dia da ira. Esta é a sorte que Deus reservou ao ímpio, a herança que destinou ao amaldiçoado. 

Job tomou a palavra e disse: Escutai atentamente minhas palavras, seja este o consolo que me dais. Permiti que eu fale, e, quando tiver terminado, zombai à vontade. É de um homem que me queixo? Como não hei-de impacientar-me? Olhai para mim e empalidecei, ponde a mão sobre a vossa boca. Só em pensar nisso, fico desconcertado, um pavor apodera-se do meu corpo. Por que os ímpios continuam a viver, e ao envelhecer se tornam ainda mais ricos? Vêem assegurada a própria descendência, e seus rebentos aos seus olhos subsistem. Suas casas, em paz e sem temor, a vara de Deus não as atinge. Seu touro reproduz sem falhar, sua vaca dá cria sem abortar. Deixam as crianças correr como cabritos, e seus pequenos saltar como cervos. Cantam ao som dos tamborins e da cítara e divertem-se ao som da flauta. Sua vida termina na felicidade, descem em paz ao Xeol. Eles que diziam a Deus: "Afasta-te de nós, que não nos interessa conhecer os teus caminhos. Quem é Shaddai, para que o sirvamos? De que nos aproveita invocá-lo?" Acaso não têm eles a prosperidade nas suas mãos, e Deus não se afastou do conselho dos ímpios? Quantas vezes se vê apagar a lâmpada do ímpio, a infelicidade cair sobre ele, a ira divina destruir os seus bens, o vento arrastá-lo como palha, o turbilhão levá-lo como debulho? Deus o puniria em seus filhos? Que lhe dê a ele mesmo o castigo merecido, para que o sinta! Que seus próprios olhos vejam sua ruína e ele mesmo beba a cólera de Shaddai! Pois que lhe importam os de sua casa, depois de morto, quando a quota de seus meses estiver preenchida? Acaso se pode ensinar a Deus o conhecimento, Àquele que julga os seres do Alto? Este morre em pleno vigor, de todo tranquilo e em paz, seus flancos bem roliços, e a medula de seus ossos cheia de seiva. Aquele morre com a alma amargurada, sem ter gozado a felicidade. E, contudo, jazem no mesmo pó, cobrem-se ambos de vermes. Ah, eu conheço os vossos pensamentos, vossas malvadas reflexões a meu respeito! Dizeis: "Onde está a casa do poderoso, onde a morada dos ímpios?" Não interrogais os viajantes, desconheceis os seus testemunhos? No dia do desastre o ímpio é poupado, no dia do furor é posto a salvo. Quem lhe reprova sua conduta e quem lhe dá a paga pelo que fez? É conduzido ao sepulcro, e monta-se guarda sobre seu túmulo. Leves lhe são os torrões do vale. Atrás dele toda a população desfila. Que significam, pois, essas vãs consolações? Se nas vossas respostas não há mais que perfídia! 

Elifaz de Temã tomou a palavra e disse: Pode um homem ser útil a Deus, quando o prudente só é útil a si mesmo? Que importa a Shaddai que sejas justo: aproveita-lhe a tua integridade? É pela tua piedade que te corrige e entra contigo em julgamento? Não é antes pela tua grande malícia e por tuas inumeráveis culpas? Exigias sem razão penhores a teu irmão e despojavas de suas roupas os nus; não davas água ao sedento e recusavas pão ao faminto; entregavas a terra a um homem poderoso, para que ali se instalasse o favorecido; despedias as viúvas com as mãos vazias, quebravas os braços dos órfãos. Por isso te encontras preso nos laços, amedronta-te um terror improviso, a luz obscurece-se e já não vês nada, e submerge-te um turbilhão de água. Não é Deus excelso como os céus? Ele não vê a cabeça das estrelas? Porque ele está nas alturas, tu dizes: Quem conhece Deus? Pode ele julgar através das nuvens? As nuvens encobrem-no e impedem-no de ver, quando passeia pela abóbada do céu. Queres seguir os velhos caminhos por onde andaram os homens perversos? Foram arrebatados antes do tempo, quando uma torrente se lançou sobre seus fundamentos. Diziam a Deus: "Afasta-te de nós. Que pode fazer-nos Shaddai?" Ele enchia as suas casas de bens, mas longe de mim o conselho dos ímpios! Os justos vêem isto e alegram-se, o inocente zomba deles: "Eis destruídos os seus adversários! Devorados sejam pelo fogo os seus bens!”. Reconcilia-te com ele e terás paz: desta maneira a felicidade cairá sobre ti. Aceita a instrução de sua boca e guarda seus preceitos em teu coração. Se voltares a Shaddai como humilhado, se afastares de tua tenda a injustiça, se colocares o teu ouro sobre o pó, o Ofir entre as pedras do riacho, Shaddai será as tuas barras de ouro e a tua prata arrecadada. Então, sim, alegrar-te-ás em Shaddai e erguerás para Deus teu rosto. Ele ouvirá as tuas súplicas e tu cumprirás os teus votos; decidir-te-ás por um projeto e realizar-se-á, e a luz brilhará no teu caminho. Porque ele abate o orgulho dos soberbos e salva o homem de olhar humilde. Ele libertará o homem inocente, e tu serás salvo pela pureza de tuas mãos. 

Job tomou a palavra e disse: Também hoje a minha queixa é uma revolta, porque sua mão agrava meus gemidos. Oxalá soubesse como encontrá-lo, como chegar à sua morada. Diante dele exporia a minha causa, com a minha boca cheia de argumentos. Gostaria de saber com que palavras iria responder-me e ouvir o que teria para me dizer. 
Usaria de violência ao pleitear comigo? Não, bastaria que me desse atenção. Ele reconheceria no seu adversário um homem recto, e eu faria triunfar a minha causa para sempre. Mas, se for ao Oriente, não está ali; ao Ocidente, não o encontro. Se o procuro no Norte não o vejo, se me volto para o Sul, não o descubro. Mas, já que conhece o meu proceder, que me ponha à prova, dela sairei como ouro acrisolado. Meus pés calcaram suas pegadas, segui o seu caminho sem me desviar. Não me afastei do mandamento de seus lábios e guardei no peito as palavras de sua boca. Mas ele decide; quem poderá dissuadi-lo? Tudo o que ele quer, ele o faz. Executará a sentença a meu respeito, como tantos outros dos seus decretos. Por isso estou consternado em sua presença, e estremeço ao pensá-lo. Deus abateu-me o ânimo, Shaddai encheu-me de terror. E, todavia, não me dou por vencido por estas trevas; ele, porém, cobriu-me o rosto com a escuridão. 
Por que Shaddai não marca o tempo e seus amigos não chegam a ver seus dias? Os ímpios mudam as fronteiras, roubam rebanho e pastor. Apoderam-se do jumento dos órfãos e tomam como penhor o boi da viúva. Empurram os indigentes para fora do caminho, e os pobres da terra escondem-se todos. Como onagros do deserto, eles saem para o trabalho, procurando desde a aurora uma presa, e, de tarde, o pão para os seus filhos. Ceifam no campo do malvado e rebuscam a vinha do ímpio. Andam nus por falta de roupa, famintos carregam os feixes. Em pleno meio-dia ficam entre dois muretes; sedentos, pisam os lagares. Nus passam a noite, sem roupa e sem coberta contra o frio. Ensopados pelas chuvas das montanhas, sem abrigo comprimem-se contra o rochedo. O órfão é arrancado do seio materno e a criança do pobre é penhorada. Da cidade sobem os gemidos dos moribundos e, suspirando, os feridos pedem socorro e Deus não ouve a sua súplica. Existem também os rebeldes à luz, que não conhecem os seus caminhos nem permanecem em suas veredas. É noite quando o assassino se levanta para matar o pobre e o indigente. Durante a noite o ladrão ronda, às escuras arromba as casas. O olho do adúltero aguarda o crepúsculo dizendo: "Ninguém me verá", e cobre o rosto com uma máscara. Durante o dia, escondem-se os que não querem conhecer a luz. A manhã é escura para eles, e experimentam os seus terrores. Se não é assim, quem me desmentirá ou reduzirá a nada minhas palavras? 

Baldad de Suás tomou a palavra e disse: É um soberano temível, aquele que conserva a paz nas suas alturas. Pode ser contado o número das suas tropas? E sobre quem não se levanta a sua luz? Como pode o homem justificar-se diante de Deus? Ou mostrar-se puro quem nasceu de mulher? Se até a própria Lua não brilha e as estrelas não são puras a seus olhos, quanto menos o homem, essa larva, e o filho de homem, esse verme? 
As sombras tremem debaixo da terra, as águas e seus habitantes estão com medo. O Xeol está nu a seus olhos e a perdição está sem véu. Estendeu o setentrião sobre o vazio e suspendeu a terra sobre o nada. Ele prende as águas nas nuvens, sem que estas se rasguem com o peso. Encobre a face da Lua cheia e estende sobre ela a sua nuvem. Traçou um círculo sobre a superfície das águas, onde a luz confina com as trevas. As colunas do céu abalam-se, assustadas com sua ameaça. Com seu poder aquietou o mar, com sua destreza aniquilou Raab. O seu sopro clareou os Céus e sua mão traspassou a serpente fugitiva. Tudo isso é o exterior das suas obras, e ouvimos apenas um suave eco. Quem compreenderá o estrondo do seu poder? 

Job tomou a palavra e disse: Como sabes sustentar o débil e socorrer um braço sem vigor! Como sabes aconselhar o ignorante e dar mostras de profundo conhecimento! A quem dirigiste as tuas palavras? Ou que espírito falou em ti? 
Job continuou a exprimir-se em sentenças, dizendo: Pelo Deus vivo que me nega justiça, por Shaddai que me amargura a alma, enquanto em mim houver um sopro de vida e o alento de Deus nas narinas, meus lábios não dirão falsidades, nem a minha língua pronunciará mentiras! Longe de mim dar-vos razão! Até ao último alento manterei minha inocência, ficarei firme em minha justiça e não a suspenderei; a consciência não me envergonha por meus dias. Tenha o meu inimigo a sorte do ímpio, e meu adversário, a do injusto! Que esperança tem o perverso quando suplica e quando eleva a Deus a sua alma? Acaso Deus escutará seu clamor, quando o surpreende a aflição? Encontrará seu conforto em Shaddai, e invocará Deus a todo o momento? Instruir-vos-ei acerca do poder de Deus, não vos ocultarei os desígnios de Shaddai. Todos vós bem o vedes, por que vos perdeis em vãs ilusões? 

Esta é a porção que Deus reserva ao ímpio, a herança que o tirano recebe de Shaddai: Se tiver muitos filhos, cairão pela espada, seus descendentes não terão de comer. Quem sobreviver será enterrado pela peste, e suas viúvas não os chorarão. Ainda que acumule prata como pó e amontoe vestidos como barro, ele amontoa, mas é o justo quem os vestirá; quanto à prata, é o inocente quem a herdará. Construiu uma casa como uma teia de aranha, construiu uma choupana para a guarda. Deita-se rico — mas será pela última vez: ao abrir os olhos não terá mais nada. Em pleno dia surpreendem-no terrores, de noite arrebata-o um turbilhão. O vento leste levanta-o e fá-lo desaparecer e varre-o de seu lugar. Precipita-se sobre ele sem piedade, enquanto procura fugir de seu alcance. Aplaudem a sua ruína, assobiam contra ele por onde ele vai. 
É apenas um feto sobre as águas, cai a maldição sobre sua propriedade na terra, ninguém mais vai para a sua vinha. Como o calor estival absorve as águas da neve, assim o Xeol àquele que pecou. Dele se esquece o ventre que o formou, o seu nome não é mais lembrado. Assim é arrancada a iniquidade como uma árvore. Ele maltratou a mulher estéril sem filhos e não socorreu a viúva. Mas aquele que prende com força os tiranos aparece e tira-lhe a certeza da vida. Ele deixava-o apoiar-se numa falsa segurança; os seus olhos, porém, observavam os seus caminhos. Exaltado por breve tempo, deixa de existir; cai como a erva que se colhe e murcha como as espigas. 

A prata tem as minas, o ouro, um lugar onde é depurado. O ferro extrai-se da terra, ao fundir-se a pedra, sai o bronze. Impõe-se um limite às trevas, sonda-se até ao extremo limite a pedra escura e sombria. Estrangeiros perfuram as grutas em lugares não frequentados, e suspensos balançam longe dos homens. A terra, que produz o pão, por baixo é devorada pelo fogo. Suas pedras são jazidas de safiras, seus torrões encerram pepitas de ouro. Tais veredas não as conhece o abutre, nem as divisa o olho do falcão; não as percorrem as feras arrogantes, nem as atravessa o leão. O homem lança mão da pederneira, arranca as montanhas pela raiz. Na rocha abre galerias, com o olhar atento a tudo o que é precioso. Explora as nascentes dos rios e traz à luz o que está oculto. Mas a Sabedoria, donde provém ela? Onde está o lugar da Inteligência? O homem não lhe conhece o caminho, nem se encontra na terra dos mortais. Diz o Abismo: "Não está em mim": responde o Mar: "Não está comigo." Não se compra com o ouro mais fino, nem se troca a peso de prata, não se paga com ouro de Ofir, com ônix precioso ou safiras. Não a igualam o ouro, nem o vidro, não se paga com vasos de ouro fino. Quanto ao coral e ao cristal, nem falar! É melhor pescar a Sabedoria do que as pérolas. Não se iguala ao topázio de Cuch, nem se compra com o ouro mais puro. Donde vem, pois, a Sabedoria? Onde está o lugar da Inteligência? Está oculta aos olhos dos mortais e até às aves do céu está escondida. A Perdição e a Morte confessam: "O rumor de sua fama chegou até nós." Só Deus lhe conhece o caminho, só ele sabe o seu lugar, pois contempla os limites do mundo e vê quanto há debaixo do céu. Quando assinalou seu peso ao vento e regulou a medida das águas, quando impôs uma lei à chuva e uma rota para o relâmpago e o trovão, ele viu-a e avaliou, penetrou-a e examinou-a. E disse ao homem: "O temor do Senhor, eis a Sabedoria; fugir do mal, eis a Inteligência." 

Job continuou a exprimir-se em sentenças e disse: Quem me dera voltar aos meses de antanho, aos dias em que Deus velava por mim; quando a sua lâmpada brilhava sobre a minha cabeça e à sua luz eu andava na escuridão! Pudesse eu rever os dias do meu Outono, quando Deus protegia a minha tenda e Shaddai ainda estava comigo e os meus filhos me rodeavam! Banhava meus pés em creme de leite, e a rocha dava-me rios de azeite. Quando me dirigia à porta da cidade e tomava assento na praça, os jovens ao ver-me retiravam-se, os anciãos levantavam-se e ficavam de pé, os chefes interrompiam suas conversas, pondo a mão sobre a boca; emudecia a voz dos líderes e sua língua colava-se ao céu-da-boca. Ouviam-me com grande expectativa, e em silêncio escutavam o meu conselho. Quando acabava de falar, ninguém replicava, as minhas palavras ficavam a gotejar sobre eles; esperavam-nas como chuvisco, como quem abre a boca ávida para a chuva tardia. Sorria para eles, mal o acreditavam e não perdiam nenhum gesto favorável. Sentado como chefe, eu escolhi seu caminho; como um rei instalado no meio de suas tropas, guiava-os e eles deixavam-se conduzir. Quem me ouvia falar felicitava-me, quem me via dava testemunho de mim; porque eu livrava o pobre que pedia socorro e o órfão que não tinha auxílio. A bênção do moribundo pousava sobre mim, e eu alegrava o coração da viúva. A justiça vestia-se como túnica, o direito era o meu manto e meu turbante. Eu era olhos para o cego, era pés para o coxo. Era o pai dos pobres e examinava a causa de um desconhecido. Quebrava as mandíbulas do malvado, para lhe arrancar a presa dos dentes. E pensava: "Morrerei na minha altivez, depois de dias numerosos como areia; minhas raízes estendidas até à água, o orvalho pousando em minha ramagem, minha honra ser-me-á sempre nova, em minha mão o meu arco retomará força." 

Mas agora zombam de mim moços mais jovens que eu, a cujos pais teria recusado deixar com os cães do meu rebanho. Para que me serviriam seus braços, se suas forças se consumiram? Mirrados pela penúria e pela fome, ruminavam as raízes da estepe, lugar sombrio de ruína e desolação; colhendo malvas entre os arbustos, fazendo pão com raízes de giesta; banidos da sociedade dos homens, a gritos, como a ladrões, morando em barrancos escarpados, em covas e grutas do rochedo. Ouvem-se os seus rugidos entre as moitas, acocorados nas urtigas: gente vil, homens sem nome, são rejeitados pela terra! E agora sou alvo de suas zombarias, o tema de seus escárnios. Cheios de medo, ficam à distância e atrevem-se a cuspir-me no rosto. Porque ele deteve o meu arco e me abateu, perdem toda a compostura diante de mim. À minha direita levanta-se a canalha, olham se estou tranquilo e abrem contra mim caminhos sinistros; desfazem minha senda, trabalham para a minha ruína e não há quem os detenha. Irrompem por uma larga brecha e sou jogado sob os escombros. Os terrores estão soltos contra mim, minha segurança se dissipa como vento, minha esperança varrida como nuvem. A minha alma agora dissolve-se: os dias de aflição apoderam-se de mim. De noite um mal penetra nos meus ossos, não dormem as chagas que me corroem. Ele agarra-me com violência pela roupa, segura-me pela orla da túnica. Joga-me para dentro do lodo e confundo-me com o pó e com a cinza. Clamo por Ti, e não me respondes; insisto, e não te importas comigo. Tu tornaste-te meu verdugo e atacas-me com teu braço musculoso. Levantas-me e fazes-me cavalgar o vento e sacodes-me com a tempestade. Bem vejo que me devolves à morte, ao lugar de encontro de todos os mortais. Levantei por acaso a mão contra o pobre, que na penúria clamava por justiça? Não chorei com o oprimido, não tive compaixão do indigente? Esperei felicidade, veio-me a desgraça; esperei luz, veio-me a escuridão. Fervem sem parar dentro de mim as entranhas, dias de aflição vêm ao meu encontro. Caminho no luto, sem consolação, e na assembleia levanto-me a pedir auxílio. Tornei-me irmão dos chacais e companheiro dos avestruzes. Minha pele enegrece-se e cai, meus ossos são consumidos pela febre. Minha cítara está de luto e a minha flauta acompanha o pranto. 

Eu fiz um pacto com os meus olhos: não olhar para uma virgem. Que galardão me reserva Deus lá do alto, que herança o Shaddai lá dos céus? Acaso não é a desgraça para o criminoso, e o infortúnio para os malfeitores? Não vê ele os meus caminhos, não conta todos os meus passos? Caminhei com a mentira, acertei passo com a falsidade? Que Deus me pese numa balança exata e reconhecerá a minha integridade. Se se desviaram do caminho os meus passos, e o meu coração seguiu as atracções dos olhos, se se apegou alguma mancha às minhas mãos, que outro coma o que semeei, e que arranquem todas as minhas plantações! Se o meu coração se deixou seduzir por mulher e estive à espreita à porta do vizinho, que minha mulher gire a mó para outrem e outros se debrucem sobre ela! Pois isso seria uma infâmia, um crime digno de castigo, um fogo que devoraria até à perdição total, destruindo todos os meus bens. Se deneguei o direito ao escravo ou à escrava, quando pleiteavam comigo, que farei quando Deus se levantar, que lhe responderei quando me interrogar? Quem me fez a mim no ventre não o fez também a ele? Quem nos formou a ambos não é um só? Se minha terra pede vingança contra mim, e os seus sulcos choram com ela; se comi o seu produto sem ter pago por ele, asfixiando aquele que o cultivou, que nasçam cardos em vez de trigo, no lugar de cevada, a erva fétida! Se fui insensível às necessidades dos fracos, se deixei tristes os olhos da viúva, enquanto comi meu bocado sozinho, sem o repartir com o órfão; — na verdade, desde minha infância Deus criou-me como um pai, e guiou-me desde o seio de minha mãe —; se vi um miserável sem roupas, um pobre sem cobertor, e não me agradeceram os seus flancos, aquecidos com a lã de minhas ovelhas; se levantei a mão contra o órfão, sabendo-me importante na Porta, que se desprenda da espádua meu ombro, e que o meu braço se quebre no cotovelo! Porque o terror de Deus caiu sobre mim, não subsistirei diante da sua majestade. Se pus no ouro a minha confiança e disse ao ouro mais puro: "És minha segurança"; se me comprazi com as minhas grandes riquezas, com a fortuna amontoada por minhas mãos; se olhei para o Sol resplandecente ou para a Lua que caminha com esplendor, e meu coração se deixou seduzir secretamente, e minha mão lhes enviou um beijo; também isto seria um crime digno de castigo, pois teria renegado ao Deus do alto. Se me alegrei com a desgraça do meu inimigo e exultei com a infelicidade que lhe sobreveio, ou permiti que a minha boca pecasse, e reclamasse a sua vida com uma maldição; se homens de minha tenda disseram: "Oxalá nos deixassem saciar-nos de sua carne!". Na verdade, o estrangeiro nunca pernoitou à intempérie, abri sempre minha porta ao viandante. Se ocultei o meu delito aos homens escondendo no peito a minha culpa, por temor diante da gritaria da multidão e por medo do desprezo dos parentes, a ponto de me manter calado sem pôr os pés fora da porta, oxalá houvesse quem me ouvisse! Esta é minha última palavra: que me responda Shaddai! O libelo redigido pelo meu adversário levá-lo-ia sobre meus ombros, atá-lo-ia como um diadema. Dar-lhe-ia conta de meus passos e aproximar-me-ia dele, como um príncipe. Fim das palavras de Job. 


Aqueles três homens não responderam mais a Job, porque ele teimava em ter-se por justo. Então inflamou-se a ira de Eliú, filho de Baraquel, de Buz, da família de Ram; indignou-se contra Job, porque pretendia ter razão contra Deus. Indignou-se também contra os três companheiros, por não encontrarem resposta satisfatória, contentando-se em deixar as falhas a Deus. Enquanto falavam com Job, Eliú esperava, porque eram mais velhos; mas ao ver que nenhum dos três tinha algo a mais para responder, encheu-se de indignação. Então Eliú, filho de Baraquel, de Buz, interveio dizendo: Sou ainda jovem em anos, e vós sois anciãos; por isso, intimidado, não me atrevia a expor-vos o meu conhecimento. Dizia comigo: "Que falem os anos, que a idade madura ensine a sabedoria." Mas é o espírito no homem, o alento de Shaddai que dá inteligência. Não é a idade avançada que dá sabedoria, nem a velhice o discernimento do que é justo. Por isso, convido-vos a escutarem-me, porque também eu manifestarei o meu conhecimento! Esperei enquanto faláveis, prestei atenção aos vossos argumentos, enquanto trocáveis palavras. Por mais que prestasse atenção, nenhum de vós conseguiu refutar Job e replicar aos seus argumentos. Não digais: "Encontramos a sabedoria; nossa doutrina é divina, não humana." Não é assim que irei discutir, replicarei a Job com outras palavras. Desconcertados, já não respondem, faltam-lhes palavras. Devo aguardar, já que eles não falam, já que aí estão sem responder? Quero tomar parte na discussão; mostrarei também o meu conhecimento. Porque estou cheio de palavras, pressionado por um sopro interior. Dentro de mim há como que um vinho novo que quer transbordar e faz estalar os odres novos. Falarei para ficar aliviado, abrirei os lábios para responder. Não tomarei partido por ninguém, a ninguém adularei. Porque não sei adular, e porque logo me arrebataria o Criador. 

E agora, Job, escuta as minhas palavras, presta atenção ao meu discurso. Eis que abro a boca e a minha língua vai falar sob o céu-da-boca. Meu coração dirá palavras de conhecimento, e meus lábios falarão com franqueza. Contesta-me, se podes; prepara-te, põe-te em frente de mim! Eu sou igual a ti e não um deus, também eu modelado de argila. Foi o espírito de Deus que me fez, e o sopro de Shaddai que me animou. Eis que o meu temor não deverá intimidar-te, nem a minha mão pesar sobre ti. Disseste em minha presença, ouço ainda o eco de tuas palavras: "Sou puro, não tenho delito; sou inocente, não tenho culpa. E contudo, ele encontra pretextos contra mim e considera-me seu inimigo. Coloca meus pés no cepo e vigia todos os meus passos." Não tens razão nisto, eu te digo, pois Deus é maior do que o homem. Como te atreves a acusá-lo: é porque não te responde palavra por palavra? Deus fala de um modo e depois de um outro, e não prestamos atenção. Em sonhos ou visões noturnas, quando a letargia desce sobre os homens adormecidos no seu leito: então abre-lhes os ouvidos, e aterroriza-os com aparições, para afastar o homem de suas obras e pôr fim ao seu orgulho, impedindo a sua alma de cair na sepultura e a sua vida de cruzar o canal. Corrige-o também sobre o leito com o sofrimento, quando os ossos tremem sem parar, a ponto de aborrecer a comida e repugnar-lhe o manjar. Consome-se a sua carne, desaparecendo da vista, expondo os ossos que antes não se viam. Sua alma aproxima-se da sepultura, e sua vida do jazigo dos mortos, a não ser que encontre um Anjo favorável, um Mediador entre mil, que dê testemunho da sua rectidão, que dele tenha compaixão e diga: "Livra-o de baixar à sepultura, que encontrei resgate para sua vida"; e sua carne reencontrará a força juvenil e voltará aos dias de sua juventude. Suplicará a Deus e será atendido, contemplará com alegria sua face. Anunciará aos homens sua justificação, cantará diante deles e dirá: "Pequei e violei a justiça: e Deus não me tratou de acordo com a minha culpa. Salvou minha alma da sepultura, e minha vida se inunda de luz". Tudo isso faz Deus duas ou três vezes ao homem, para tirar a sua alma da sepultura e iluminá-lo com a luz da vida. Presta atenção, Job, escuta-me, guarda silêncio, enquanto eu falo. Se tens algo a dizer, responde-me, fala, que eu desejo dar-te razão. Mas, se nada tens, escuta-me: cala-te e ensinar-te-ei a sabedoria. 
Eliú prosseguiu dizendo: Ouvi, ó sábios, minhas palavras, e vós, eruditos, prestai atenção, pois o ouvido distingue as palavras como o paladar saboreia os alimentos. Examinemos juntos o que é justo, vejamos o que é bom. Eis que Job afirmou: "Eu sou justo e Deus nega-me o direito. O meu juiz mostra-se cruel contra mim; minha ferida é incurável, sem crime de minha parte." Quem há como Job, que bebe sarcasmos como água, faz companhia aos malfeitores e anda com os ímpios? Pois ele disse: "Não aproveita ao homem estar em boas graças com Deus." Escutai-me, homens sensatos. Longe de Deus o mal, de Shaddai, a iniquidade! Ele retribui ao homem segundo suas obras, e dá a cada um conforme o seu proceder. Na verdade, Deus não pratica o mal, Shaddai não perverte o direito. Quem lhe confiou o governo da terra, quem lhe entregou o universo? Se levasse de novo a si o seu espírito, se concentrasse em si o seu sopro, expiraria toda a carne no mesmo instante, e o homem voltaria a ser pó. Se tens inteligência, escuta isto, e presta ouvido ao som de minhas palavras. Um inimigo do direito saberia governar? Ousarias condenar o Justo omnipotente? Ele que diz a um rei: "Homem vil!" e trata os nobres como ímpios, não considera os príncipes e nem distingue o fraco e o homem importante. Pois todos são a obra das suas mãos. Morrem de repente em plena noite, os grandes perecem e desaparecem, e sem esforço afasta um tirano. Porque seus olhos acompanham o proceder de cada um e vigiam todos os seus passos. Não há trevas, nem sombras espessas, onde possam esconder-se os malfeitores. Pois que não se fixa ao homem um prazo para comparecer ao tribunal divino. Ele aniquila os poderosos sem muitos inquéritos e põe outros em seu lugar. Conhece a fundo suas obras! Derruba-os numa noite e são destruídos. Açoita-os como criminosos, e em público lança-lhes cadeias, porque se afastaram dele e não quiseram conhecer os seus caminhos; de sorte que chegou a ele o clamor do fraco, e o lamento dos pobres foi por ele ouvido. Se fica imóvel, quem o agitará? Se esconde sua face, quem o verá? Ele tem piedade das nações e dos indivíduos, liberta um ímpio dos laços da aflição, quando este diz a Deus: "Fui seduzido, não farei mais o mal; se pequei, ensina-me; se pratiquei a injustiça, não o farei de novo." Será que, a teu ver, deverá ele punir, porque rejeitas as suas decisões? Como és tu que escolhes, e não eu, faz-nos conhecer o teu conhecimento! Homens sensatos dir-me-ão, bem como o sábio que me escuta: "Job não falou com conhecimento, e as suas palavras não levam ao bom proceder." Pois bem, que Job seja examinado até ao fim, por suas respostas dignas de um ímpio! Porque ao seu pecado acrescenta a rebelião, põe fim ao direito em nosso meio e multiplica suas palavras contra Deus. 
Eliú prosseguiu dizendo: Julgas ter razão, pretendendo justificar-te diante de Deus? Já que dizes: "Que te importa? Que vantagem tenho a mais do que se houvesse pecado?" Vou responder-te, a ti e aos teus amigos. Contempla os céus e vê, observa as nuvens: são mais altas que tu. Se pecas, que mal lhe fazes? Se acumulas delitos, que dano lhe causas? Se és justo, que lhe dás, que recebe ele de tua mão? A tua maldade só afecta a um homem como tu; a tua justiça, só a um mortal. Uns gemem sob o peso da opressão e pedem socorro contra o braço dos poderosos, mas ninguém diz: "Onde está o Deus que me criou, que inspira cantos de louvor durante a noite, que nos instrui mais do que aos animais da terra, e nos faz mais sábios do que os pássaros do céu?" E, então, por mais que gritem, ele não responde, pois vê a arrogância dos maus. Certamente Deus não escuta a vaidade, Shaddai a isso não presta atenção. Muito menos quando dizes: "Eu não o vejo, o meu processo está aberto diante dele e espero." Ou então: "Sua ira não castiga, parece ignorar a revolta do homem." Job abre a boca para o vazio, e insensatamente multiplica palavras. 
Eliú prosseguiu dizendo: Espera um pouco, que eu te instruirei, tenho ainda mais razões em favor de Deus. Trarei de longe meu conhecimento para justificar o meu Criador. Na verdade, as minhas palavras não são falazes, fala contigo um sábio consumado. Deus não rejeita o homem de coração puro. Não deixa viver o ímpio em plena força. Ele faz justiça aos pobres, e faz prevalecer os direitos do justo. Quando eleva reis ao trono e se exaltam os que se assentam para sempre, então amarra-os com cadeias, e são presos nos laços da aflição. Ele lhes dará a conhecer as próprias ações e quão graves eram as suas faltas. Abre-lhes os ouvidos à disciplina e exorta-os a que se afastem do mal. Se o escutarem e se submeterem, terminarão seus dias em felicidade e seus anos no bem-estar. Mas, se não o escutarem, atravessarão o Canal e morrerão como insensatos. Os de coração perverso, que retêm sua ira e não pedem auxílio quando os aprisiona, morrem em plena juventude, e a sua vida é desprezada. Mas ele salva o pobre por sua pobreza, adverte-o em sua miséria. Também a ti ele quer arrancar da angústia. Quando gozavas da abundância sem restrição e a gordura caía de tua mesa, tu não instruías o processo dos ímpios e não defendias o direito do órfão. Toma cuidado, para que não te seduza a fartura e não te perverta um rico suborno. Faz comparecer tanto o importante quanto o que nada tem, tanto o homem forte quanto o fraco. Não esmagues os que te são estrangeiros, para colocar no seu lugar a tua parentela. Cuida que não voltes à iniquidade, pois, por causa dela, foste provado pela aflição. 

Vê como Deus é sublime em seu poder. Qual é o mestre que se lhe pode comparar? Quem prescreve a sua conduta? Quem lhe pode dizer: "Fizeste mal"? Pensa, antes, em glorificar as suas obras, que tantos homens celebram em seus cantos. Todos os homens as contemplam, admiram-nas de longe os mortais. Deus é grande demais para que o possamos conhecer, o número de seus anos é incalculável. Faz subir as gotas de água e destila a chuva em neblina. E as nuvens derramam-se em chuviscos, e a chuva cai sobre a multidão humana. Com ela alimenta os povos, dando-lhes comida abundante. Quem compreenderá as ondulações da sua nuvem, o ribombar ameaçador da sua tenda? Espalha uma neblina diante de si, cobre o cimo das montanhas, com sua mão levanta os raios, e aponta-os para o seu alvo. Seu trovão anuncia-o, fervendo de ira contra a iniquidade. 
À vista disto, treme o meu coração e salta fora do lugar. Atenção!, ouvi o trovão de sua voz, e o estrondo que sai de sua boca. Ele envia-o pela vastidão dos céus, e os seus raios aos confins da terra. A seguir ressoa o seu bramido e reboa seu fragor majestoso; nada detém seus raios, tão logo se faz ouvir sua voz. Deus faz-nos ver maravilhas e realiza proezas que não compreendemos. Diz à neve: "Cai sobre a terra", e ao aguaceiro: "Desce com violência!". Suspende a atividade dos homens, para que reconheçam que é obra sua. As feras também entram no seu covil e permanecem em suas tocas. Da Câmara austral sai o furacão, e do Setentrião vem o frio. Ao sopro de Deus forma-se o gelo, congelando a superfície das águas. Carrega de humidade o nimbo, as nuvens da tempestade expelem o raio. Ele fá-los circular e preside na sua alternância. Em tudo executam as suas ordens, sobre a superfície do seu mundo terrestre. É para castigar os povos da terra, ou para uma obra de bondade que os envia. Ouve isto, Job, pára, e considera as maravilhas de Deus! Sabes como Deus comanda as nuvens? E como a sua nuvem lampeja o raio? Sabes algo do equilíbrio das nuvens, prodígio de conhecimento consumado? Tu, que te abafas em tua roupa, quando a terra enlanguesce pelo vento sul? Podes tu como ele estender a nuvem, endurecida como uma placa de metal fundido? Ensina-me o que é preciso dizer-lhe; é melhor não discutir mais por causa das nossas trevas. Têm minhas palavras valor para ele, é ele informado por ordens de um homem? Por um tempo a luz torna-se invisível, quando as nuvens se escurecem; depois o vento passa e leva-as, e do Norte chega a claridade. Deus envolve-se em assombrosa majestade; Shaddai, nós não o compreendemos. Mas ele, na sublimidade de seu poder e rectidão, na grandeza da sua justiça, sem oprimir, impõe-se ao temor dos homens; a ele a veneração de todos os corações sensatos. 

Então Deus respondeu a Job, do seio da tempestade, e disse: Quem é esse que obscurece os meus desígnios com palavras sem sentido? Vou interrogar-te e tu me responderás. Onde estavas, quando lancei os fundamentos da terra? Diz-mo, se é que sabes tanto. Quem lhe fixou as dimensões? — se o sabes —, ou quem estendeu sobre ela a régua? Onde se encaixam as suas bases, ou quem assentou a sua pedra angular, entre as aclamações dos astros da manhã e o aplauso de todos os filhos de Deus? Quem fechou com portas o mar, quando irrompeu jorrando do seio materno; quando lhe dei nuvens como vestidos e espessas névoas como cueiros; quando lhe impus os limites e lhe firmei porta e ferrolho, e disse: "Até aqui chegarás e não passarás: aqui se quebrará a soberba de tuas vagas"? Alguma vez deste ordens à manhã, ou indicaste à aurora um lugar, para agarrar as bordas da terra e sacudir dela os ímpios? Transforma-se como argila debaixo do sinete, e tinge-se como um vestido. Ele retira a luz aos ímpios e quebra o braço rebelde. Entraste pelas fontes do mar, ou passeaste pelo fundo do abismo? Foram-te indicadas as portas da Morte, ou viste os porteiros da terra da Sombra? Examinaste a extensão da terra? Conta-me, se sabes tudo isso. De que lado mora a luz, e onde residem as trevas, para que as conduzas à sua terra e lhes ensines o caminho para casa? Deverias sabê-lo, pois já tinhas nascido e grande é o número dos teus anos. Entraste nos depósitos da neve? Visitaste os reservatórios do granizo, que reservo para o tempo da calamidade, para os dias de guerra e de batalha? Por onde se divide o relâmpago, se difunde o vento leste sobre a terra? Quem abriu um canal para o aguaceiro e o caminho para o relâmpago e o trovão, para que chova em terras despovoadas, na estepe inabitada pelo homem, para que se sacie o deserto desolado e brote erva na estepe? Terá pai a chuva? Quem gera as gotas do orvalho? De que seio saiu o gelo? Quem deu à luz a geada do céu, quando se endurece a água como pedra e se torna compacta a superfície do abismo? Podes atar os laços das Plêiades, ou desatar as cordas de Órion? Podes fazer sair a seu tempo a Coroa, ou guiar a Ursa com seus filhos? Conheces as leis dos céus, determinas o seu mapa na terra? Consegues elevar a voz até às nuvens, e a massa das águas obedece-te? Despachas os raios, e eles vêm e dizem-te: "Aqui estamos"? Quem deu sabedoria à íbis, e ao galo inteligência? Quem enumera as nuvens com exatidão e quem entorna os cântaros do céu, quando o pó se funde numa massa e os torrões se conglutinam? És tu que caças a presa para a leoa, ou sacias a fome dos leõezinhos, quando se recolhem nos seus covis, ou se põem de emboscada nas moitas? Quem prepara ao corvo o seu alimento, quando gritam a Deus seus filhotes e se erguem por falta de alimento? 
Sabes quando parem as camurças? Ou assististes ao parto das corças? Contas os meses de sua prenhez, ou conheces o momento do parto? Elas abaixam-se, forçam uma saída às crias, e livram-se das suas dores. Seus filhotes crescem e ficam fortes, saem para o campo aberto e não voltam mais. Quem pôs o asno selvagem em liberdade e soltou as rédeas do onagro? Dei-lhe por habitação a estepe e por morada o deserto salgado. Ele ri-se do barulho das cidades e não ouve os gritos do arrieiro. Ele explora as montanhas, o seu pasto, à procura de lugares verdejantes. Consentirá o búfalo em servir-te e passar a noite em teu estábulo? Podes segurá-lo com uma corda ao pescoço, e lavrará a terra atrás de ti? Podes fiar-te nele por ser grande a sua força, confiando-lhe os teus labores? Contarás com ele na colheita e na armazenagem dos cereais de tua eira? A asa do avestruz compara-se com as penas da cegonha e do falcão? Abandona à terra seus ovos, para que a areia os incube, sem pensar que um pé possa quebrá-los e uma fera pisoteá-los. É cruel com seus filhotes, como se não fossem seus, e não lhe importa que malogre sua fadiga. É porque Deus o privou da sabedoria e não lhe concedeu inteligência. Mas, quando se ergue batendo os flancos, ri-se de cavalo e cavaleiro. És tu que dás ao cavalo seu brio, e lhe revestes de crinas o pescoço? És tu que o ensinas a saltar como um gafanhoto e a relinchar com majestade e terror? Pateando escava o chão, ufano de sua força, e lança-se ao encontro das armas. Ri-se do medo, nada o assusta, e não recua diante da espada. Sobre ele ressoam a aljava, a lança faiscante e o dardo. Com ímpeto e estrondo devora a distância e não pára, ainda que soe o clarim. Ao toque da trombeta ele relincha! Fareja de longe a batalha, os gritos de mando e os alaridos. É por tua sabedoria que o falcão levanta voo e estende as suas asas em direção ao Sul? Acaso é sob tua ordem que a águia remonta o voo e constrói o seu ninho nas alturas? Habita nos rochedos e lá pernoita, o penhasco é seu baluarte. De lá espia sua presa, que de longe os seus olhos descobrem. Seus filhotes sorvem o sangue; onde houver um cadáver, lá está. 

Deus falou a Job, e disse: O adversário de Shaddai cederá? O censor de Deus irá responder? Job respondeu a Deus: Eis que falei levianamente: que poderei responder-te? Porei minha mão sobre a boca; falei uma vez, não replicarei; duas vezes, nada mais acrescentarei. 

Deus respondeu a Job, do meio da tempestade, e disse: Cinge teus rins como um herói: vou interrogar-te, e tu me responderás. Atreves-te a anular o meu julgamento, ou a condenar-me, para ficares justificado? Se tens um braço como o de Deus e podes trovejar com voz semelhante à sua, reveste-te de glória e majestade, cobre-te de fausto e esplendor. Derrama o ardor da tua ira e, com um simples olhar, abate o arrogante. Humilha com o olhar o soberbo e esmaga no chão os ímpios; enterra-os todos juntos no pó e amarra-os cada qual na prisão. Então também te louvarei, porque podes com tua direita garantir a salvação. 

Vê o Beemot que eu criei igual a ti! Alimenta-se de erva como o boi. Vê a força de suas ancas, o vigor de seu ventre musculoso, quando ergue sua cauda como um cedro, trançados os nervos de suas coxas. Seus ossos são tubos de bronze; sua carcaça, barras de ferro. É a obra-prima de Deus. O seu Criador ameaça-o com a espada, proíbe-lhe a região das montanhas, onde as feras se divertem. Deita-se debaixo do lótus, esconde-se entre o junco do pântano. Dão-lhe sombra os lótus, e cobrem-no os salgueiros da torrente. Ainda que o rio transborde, não se assusta, fica tranquilo, mesmo que o Jordão borbulhe até à sua goela. Quem poderá agarrá-lo pela frente, ou atravessar-lhe o focinho com um gancho? 

Poderás pescar o Leviatã com anzol e atar-lhe a língua com uma corda? Serás capaz de lhe passar um junco pelas narinas, ou perfurar-lhe as mandíbulas com um gancho? Virá a ti com muitas súplicas, ou dirigir-te-á palavras ternas? Fará um contrato contigo, para que faças dele o teu criado perpétuo? Brincarás com ele como um pássaro, ou amarrá-lo-ás para as tuas filhas? Negociá-lo-ão os pescadores, ou dividi-lo-ão entre si os negociantes? Poderás crivar-lhe a pele com dardos, ou a cabeça com arpão de pesca? Põe-lhe em cima a mão: pensa na luta, não o farás de novo. 
 A tua esperança seria ilusória, pois somente o vê-lo atemoriza. Não se torna cruel, quando é provocado? Quem lhe resistirá de frente? Quem ousou desafiá-lo e ficou ileso? Ninguém, debaixo do céu. Não passarei em silêncio seus membros, nem sua força incomparável. Quem abriu a sua couraça e penetrou por sua dupla armadura? Quem abriu as portas de suas fauces, rodeadas de dentes terríveis? Seu dorso são fileiras de escudos, soldados com selo tenaz, tão unidos uns aos outros, que nem um sopro por ali passa. Ligados estreitamente entre si e tão bem conexos, que não se podem separar. Seus espirros relampejam faíscas, e seus olhos são como arrebóis da aurora. De suas fauces irrompem tochas acesas e saltam centelhas de fogo. Das suas narinas jorra fumo, como de caldeira acesa e fervente. Seu hálito queima como brasas, e suas fauces lançam chamas. Em seu pescoço reside a força, diante dele corre a violência. Quando se ergue, as ondas temem e as vagas do mar se afastam. Os músculos de sua carne são compactos, são sólidos e não se movem. Seu coração é duro como rocha, sólido como uma pedra molar. A espada que o atinge não resiste, nem a lança, nem o dardo, nem o arpão. O ferro para ele é como palha; o bronze, como madeira carcomida. A flecha não o afugenta, as pedras da funda são felpas para ele. A maça é para ele como lasca, ri-se do sibilo dos dardos. Seu ventre coberto de pedaços pontudos é uma grade de ferro que se arrasta sobre o lodo. Faz ferver o abismo como uma caldeira, e fumegar o mar como um piveteiro. Deixa atrás de si uma esteira brilhante, como se o oceano tivesse uma cabeleira branca. Na terra ninguém se iguala a ele, pois foi feito para não ter medo. Afronta os mais altivos, é o rei das feras soberbas. 


Job respondeu a Deus: Reconheço que tudo podes e que nenhum dos teus desígnios fica frustrado. Sou aquele que denegriu os teus desígnios, com palavras sem sentido. Falei de coisas que não entendia, de maravilhas que me ultrapassam. Conhecia-te só de ouvido, mas agora os meus olhos viram-te: por isso, retrato-me e faço penitência no pó e na cinza. 

Quando Deus acabou de dirigir a Job essas palavras, disse a Elifaz de Temã: Estou indignado contra ti e teus dois companheiros, porque não falastes corretamente de mim, como o fez meu servo Job. 
Então Deus mudou a sorte de Job, quando intercedeu por seus companheiros, e duplicou todas as suas posses. Vieram visitá-lo seus irmãos e irmãs e os antigos conhecidos; almoçaram em sua casa, consolaram-no e confortaram-no pela desgraça que Deus lhe tinha enviado; cada um lhe ofereceu uma soma de dinheiro e um anel de ouro. Deus abençoou a Job pelo fim de sua vida mais do que no princípio; possuía agora catorze mil ovelhas, seis mil camelos, mil juntas de bois e mil jumentas. Teve sete filhos e três filhas: a primeira chamava-se "Rola", a segunda "Cássia", e a terceira "Azeviche". Não havia em toda a terra mulheres mais belas que as filhas de Job. Seu pai lhes repartiu heranças como a seus irmãos. Depois desses acontecimentos, Job viveu cento e quarenta anos, e viu seus filhos e os filhos de seus filhos até à quarta geração. E Job morreu velho e cheio de dias.





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JOSÉ MARIA ALVES
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